19.3.10

Tour da Inquietação

A poesia da Elisa Lucinda é uma das melhores surpresas que eu tive nos últimos tempos. Transcrevo uma das minhas preferidas.

Quieta. Desarvorada
Molhada e escorrida na corrida das coxas
Nos vales
Vai seguindo sendo a outra
Vai surgindo sendo a louca
Enfiada no escuro buraco luminoso
Do novo
Engole esse segredo
Digere esse calor
Desfalece o capricho dessa timidez
Seria mais fácil
Se eu fosse boba e seus dedos fossem ilusão
Se fosse só tesão
Seria sem complicação
Se falar não nos fosse bonito
Se a banalidade fosse a rainha
Da situação
Quieta, desarticulada
Anda pela casa como quem segue uma estrada sem curvas
E o caminho é cheio de avisos
Tudo é bonito e grave a 100 metros mas ela não lê
Molhada e perdida jorra nas escadas
E acompanha a despedida
Querendo a chegada
Faz cortejo ao aceno
Ao intervalo, ao corte obsceno
À desembolação dos corpos
E no entanto tudo era camisa de seda
Amarrotada como esse tipo de coração
Sua voz entra nos meus buracos
E grita em cada um deles em oitava
Oito canais... bananeiras de saudades, canaviais
(E eu que não tava esperando, meu Deus).
Perambula pela sala, fura o tapete
De tanta repetição de passos no mesmo lugar
Não nota
O disco volta, arranha, repete e fura. Ela não vê
Não ouve não fala
Caminha pelas alas
Comissão de frente
Comichão de gente
Ela não entende
Essa estranha capacidade que tem pra entender
E nem consegue pensar em seus dedos dentro dela
Essa insistente boca no peito dela
Esse cheiro de cabelo seu que de repente
Invadiu as samambaias da casa
Esses lábios chamando chamando
Beija Beija Beija
Arranca os lábios e doa
Assanha outros lábios e esquece
Quieta por fora inspeciona os cômodos
Vê se as paredes não vão cair
E seu verdadeiro incomodo
E apenas essa ebulição pelo corpo
Verão de emoção
Vê se vai ser possível dormir
não sabe se lava o copo em que ele bebeu água
não sabe nada
tem apenas escrúpulos e sabe que não se passa detergente
Em lembranças
Ela é doida
Pisa em guimbas
Morde os ares
E ele permanece na casa feito incenso
Ela perdeu o senso
Olha a cama onde ele não ousou pousar
E quer deitar nesse aonde
Quer esse monstro esse monge
Que está pregado na fronha e no lençol
Ele que mesmo sem se deitar
Nunca saiu de lá
Quieta. Desembestada
Amanhã faz show, paga as contas
Queria só fazer versos
Mas há um difícil pássaro
Concentrado e disperso
Que lhe enche de liras
E a põe em conexão
Com o universo.

13.3.10

Desabafo


Cansada do olho inchado
Do coração apertado
Do sorriso guardado

Do estomago embrulhado
De me sentir um trapo
E disfarçar o fato

Da cabeça confusa
Da angústia da dúvida
De desejar a mágoa
De evitar a gota d’água


Do amor destruição
De viver solidão
Da teoria sem ação
Do não saber ser são

De me dividir
De querer partir
De fugir da alegria
De desperdiçar energia

De não estar pronta
E me deixar levar

(...)

Não quero ser onda
Quero ser mar

(Natália Mazotte)

1.12.09

A vontade de silêncio


A escolha pelo jornalismo, na época que a fiz, foi algo quase instintivo. Quando me perguntavam o que eu queria ser, a dúvida era maior do que qualquer vontade, porque a vontade maior era saber tudo do mundo, pra ter muitas histórias pra contar. Meus interesses não pareciam ter uma linha específica, na escola gostava de boa parte das matérias, apesar da queda sempre maior por aquelas que contavam histórias. Mas gostava mais ainda dos professores, daquele conhecimento que parecia inesgotável, da imagem do “mestre”.

 Então veio o estalo. No vestibular, me pareceu que o jornalismo seria a única profissão em que eu poderia aprender esse “tudo” que tanto me intrigava e passar isso adiante. Eu poderia circular por diversas áreas, estar no meio das histórias e com isso aprender sobre elas. Mas, com o passar do tempo, fui percebendo que algo me agoniava, algo não se encaixava com o meu espírito no fazer jornalístico.

 É o barulho. Descobri há pouco tempo o que eu não consigo suportar na profissão. O barulho é ensurdecedor. Se não tomar cuidado, ensurdece a alma. Entre a pressa e a pressão, pressa, pressão, impressão, pressa, pressão... ninguém se escuta! Ninguém escuta a si próprio. É só ruído.

 Meu modo de pensar mudou. Não quero saber tudo. Quero alcançar um conhecimento uno, indivizível. E percebi que o conhecimento não se alcança sem silêncio. Eu tenho sido só ruído, não consigo parar pra me ouvir, não consigo me distanciar dos lugares que gritam todo tempo e ao mesmo tempo não cheguei a uma capacidade de me desligar do exterior por completo, de meditar no caos. Estou em busca dela. Contar histórias ainda é algo que me seduz, mas a expressão é uma questão pra mim. Sinto-me sufocada por muitas vezes querer dizer o indizível, uma intuição, uma força interior, uma energia que circula.

 Pela filosofia, vejo o conhecimento que me aquieta enquanto inquieta (e me tira da inércia de pensamento). Pela arte, escuto muito do que gostaria de dizer. Escuto. Algo em mim escuta. Talvez seja o caminho pro meu contar.

Ainda estou com a cabeça repleta de dúvidas, de deitar e não conseguir dormir, de uma escuridão branca. Mas já diagnostiquei o mal estar. E de onde o desejo escapa. A vontade de silêncio.

7.9.09

"O pecado original é limitar o ser. Não o faça"

Há pessoas que surgem nas nossas vidas como anjos para nos fazerem enxergar o que não estávamos conseguindo sozinhos. Devo agradecimentos infinitos a um amigo arqueiro zen que clareou o céu chuvoso pra mim e se permitiu tanto quanto eu compartilhar ensinamentos, emoções e confortos. Entre as dádivas oferecidas, um livro maravilhoso para um vôo inesquecível.
 "Uma vez havia uma aldeia de criaturas no fundo do leito de um grande rio cristalino. A corrente do rio passava silenciosamente por cima de todos eles, jovens e velhos, ricos e pobres, bons e maus, a corrente seguindo o seu caminho, só conhecendo o seu próprio ser cristalino.

Cada criatura, a seu modo, se agarrava fortemente às plantas e pedras do leito do rio, pois agarrar-se era o seu modo de vida, e resistir à corrente era o que cada um tinha aprendido desde que nascera.Mas, por fim, uma das criaturas disse: 'Estou cansado de me agarrar. Embora não possa ver com meus próprios olhos, espero que a corrente saiba para onde está indo. Vou soltar-me e deixar que ela me leve para onde quiser. Se me agarrar, morrerei de tédio.' As outras criaturas riram e disseram: 'Louco! Se você se soltar essa corrente que adora o lançará despedaçado sobre as pedras, e terá uma morte mais rápida do que a causada pelo tédio!'

Mas ele não lhes deu ouvidos e, respirando fundo, soltou-se e imediatamente foi lançado sobre as pedras e despedaçado pela corrente! Mas, com o tempo, como ele se recusasse a tornar a se agarrar, a corrente o levantou, livrando-o do fundo, e ele não se machucou nem se magoou mais. E as criaturas mais abaixo no rio, para quem ele era um estranho, exclamaram: 'Vejam, um milagre! Uma criatura como nós, e no entanto voa! Vejam, é o Messias que chegou para nos salvar!'

E aquele que foi carregado disse: 'Nao sou mais Messias do que vocês. O rio tem o prazer em nos erguer à liberdade, se ousamos nos soltar. O nosso verdadeiro trabalho é essa viagem, essa aventura.' No entanto, cada vez exclamavam mais 'Salvador!', enquanto se agarravam às pedras; quando tornaram a olhar, ele já se fora, e então ficaram sozinhos, inventando lendas sobre um Salvador."  (Ilusões, Richard Bach)

31.8.09

Carta a um amor que (não sei se) se foi

Perdemo-nos nessa viagem
Uma viagem que não podemos prever o fim
O amor não acabou, o carinho não acabou
Acabou o lirismo, o encontro dos pensamentos
A descoberta da sincronicidade
A vontade de cantar a todo o momento
E de esperar dormir pra recitar poemas
Ver tudo de forma singular, que só os amantes de um coração conseguem.
O deitar a cabeça no ombro e o sorrir de canto de boca

É tão difícil aceitar o fim!
Culpa (perdão, Nietzsche, eu pequei!)
Responsabilidade, cobrança
Coisas que têm ocupado lugares mais nobres do que merecem
E que só com a descoberta interior se desvanecem
Expulsar nossos monstros
E guardar outros bem lá no fundo
Para que nunca possam sair e nos envergonhar do que podemos ser

No final, há sempre crescimento
Porque o bom está em tudo e até na maior das dores
A atitude é companheira do bom (que eu nunca a abandone)
Que nunca me falte atitude pra acreditar com a alma
Que nunca me falte atitude pra reconhecer um erro
Que nunca me falte atitude pra voltar atrás seguindo em frente
Que nunca me falte atitude pra viver o que há de mais bonito
E para desvelar todas as verdades escondidas.

Ainda posso te sentir e chorar de saudade,
Pensar nos momentos divididos e nos apelidos,
Nos amigos e naqueles que amamos juntos
Só preciso saber por onde me perdi
Quando começou a solidão acompanhada
Os valores que deixei de lado
E o que preciso resgatar pra voltar a sorrir
Para que eu possa de alma leve,
Totalmente entregue,
Voltar mais uma vez a amar.

3.8.09

Entrevista com o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues

Por Natália Mazotte

Sérgio Rodrigues, jornalista e escritor, nasceu em 1962. Mineiro de Muriaé, na Zona da Mata, vive há trinta anos no Rio, onde se formou em Jornalismo na ECO-UFRJ. A carreira de Rodrigues foi construída a partir do jornalismo. Começou a trabalhar no jornal "Folha de S. Paulo", em 1984, como repórter no Rio de Janeiro. Migrou para o "Jornal do Brasil", onde foi correspondente em Londres; foi subeditor do jornal "O Globo", editor da “Veja Rio”, editor-executivo da equipe que criou o jornal esportivo “Lance!” e diretor de redação da Rede Globo. De 2004 a 2007, foi editor-executivo e colunista da extinta revista eletrônica “NoMínimo”. De atitude bastante simpática em relação à internet, hoje mantém um blog de crítica literária no portal Ig, o “Todo prosa”. Seja para falar de literatura, televisão ou futebol, a palavra para ele é tudo.
É autor do recém-lançado romance “Elza, a garota” (Nova Fronteira), que mistura ficção e pesquisa histórica para dar vida a um episódio obscuro da Intentona Comunista. O sucesso do livro lhe valeu um convite para a Festa Literária Internacional de Parati (Flip), de 1 a 5 de julho deste ano. Lançou ainda o livro de contos “O homem que matou o escritor” (Objetiva, 2000), um sucesso de crítica atualmente na segunda edição, e o romance “As sementes de Flowerville” (Objetiva, 2006), distopia cheia de humor negro com ritmo de graphic novel. Dentre suas publicações também estão o volume de crônicas “What língua is esta?” (Ediouro, 2005) e o “Manual do Mané” (Planeta, 2003), uma paródia das obras de auto-ajuda.
Nessa entrevista, realizada na ocasião da visita de Rodrigues à sua antiga faculdade para falar sobre a FLIP, o jornalista-escritor simpático e de pinta cavalheiresca nos brinda com um pouco de sua história nos dois ofícios que, por escolha ou por vocação, sempre fizeram parte da vida do mineiro.

22.6.09

Que metafísica há nas árvores?

Sempre que estou tomada por um turbilhão de conflitos existenciais, questionando o ser de tudo, lembro da geniosidade de Fernando Pessoa e me pergunto: Que metafísica há nas árvores? Daí faço a minha dança e durmo para um novo dia.

"Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora."

Fernando Pessoa